terça-feira, 2 de março de 2010

Trecho de "Conversações: a respeito da vida selvagem", por Gyorgy Raimondi e Yane Santiago.

Y: As focas do Atlântico Norte transitam com certa dificuldade entre os arquipélagos da região. Não costumam ir muito além das cercanias, a não ser quando - o que é raro - uma foca dessas faz amizade com alguma baleia azul que atravessa o mundo em belas cantorias. As focas do Atlântico Norte têm um olhar desconfiado e sonham que as aves de rapina de bico laranja lhes assassinam, arrancando-lhes os corações, iguarias que tais aves de rapina provariam com total adoração, caso existissem. Nesse mesmo estado onírico, as focas do Atlântico Norte costumam se ver, em algum momento, a dormir nos colos das mesmas aves de rapina de bico de laranja, as quais cantam suaves cantigas de ninar. As focas do Atlântico Norte migram todos os anos para a Ilha de Lícia e nunca sabem se o fazem porque ouvem de lá algum canto atraente ou se o fazem para fugir das aves de rapina - e aí há contradições no estudo: fugiriam das fantasiosas aves de bico laranja ou das garras concretas e temidas dos falcões de bico amarelo?

Y: Ainda bem - para as focas do Atlântico Norte - que elas não são lemingues.

G: A primeira coisa que se deve saber sobre os lemingues é: eles não são suicidas. E se seus corpos tendem a naufragar no abismo das cordilheiras; e se se sentem impelidos ao nado dos afogados; e se se lançam ao chão a fim de se pisotearem; é tudo um engano de suas sinapses contorcidas. E este engano é o que assegura a portentosa ordem da vida.

G: A segunda coisa que se deve saber sobre os lemingues (e este segundo saber se relaciona ao primeiro saber) é: eles não são homossexuais. Porque as fêmeas lemingues são extraordinariamente férteis e, talvez por isso, tenham feromônios avassaladores: os machos são, por assim dizer, “flutuados” ao leito. E se os lemingues se cansam do embriagado perfume das fêmeas no cio e preferem servir à mesa dos machos, é tudo um engano de suas sinapses contorcidas. E este engano é o que assegura a portentosa e inescrupulosa ordem da vida.

G: A terceira coisa que se deve saber sobre os lemingues (e este terceiro saber se relaciona, indiretamente, ao segundo e ao primeiro saber) é: eles não hibernam. E se passam o inverno inteiro escondidos na tosca galeria que constroem, é por medo de servirem de narizes para os bonecos de neve. Estas galerias são simples corredores debaixo do chão gelado que qualquer passo enganado faz desabar; mas ninguém se preocupa com sua extinção porque são muitos, esses lemingues. O que assegura a portentosa e inescrupulosa e também orquestral ordem da vida.

G: A quarta e última coisa que se deve saber sobre os lemingues (e este saber não se relaciona a nenhum outro, nem aos próprios lemingues) é: os lemingues são animais extrardinários porém inúteis para a portentosa e inescrupulosa e também orquestral e enganosa ordem da vida e na disputa de lançamento ectoplasmático já perdem de saída porque (e aí os estudiosos se dividem) ou não há ectoplasma no lemingue ou o ectoplasma prende suas ventosas na grotesca gengivite do lemingue que se não fosse um lemingue seria um excelente competidor de lançamento ectoplasmático.

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