terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Pombos, sobrevôos, escrituras e outras merdas.

porque Mariana Castro e Daisy Serena escreveram e eu tinha que segui-las.

Esta época em que as portas da escritura se encontravam abertas, vento passando, arrastando tudo, algumas palavras também. Circulávamos como bichos pelas ruas, barbarizávamos o mundo. Mesmo o modesto sentar-se sobre o meio-fio da vida numa quinta-feira cinza, um cigarro na mão, uma bolsa repleta de pequenos assaltos às grandes livrarias e um amor à pele já se configuravam como produzir um rasgo nos dias amargos, no ir e vir morno e reduzido dos passantes cabisbaixos. Não se tratava de encontrar o significante, não era a estrada, não, talvez muito mais qualquer coisa que abrisse sim múltiplas estradas, fossem em que lugar fossem, mesmo numa esquecida esquina interna - que não era interna na verdade, como a jogada do homem mais rápido do mundo que vai e volta mas parece nunca ter saído do lugar de tão rápido - mas ele foi ou não? - melhor, mais do que isso, ou menos, não se trata de rapidez, mas de uma intrincada conjunção - e disjunção - de fatores, tamanhos, conexões, habilidades, chutes ao gol, pescotapas, escorregões, cheiros, tesão, flor de lótus, guerreiras, arquitetura, Lênin, boxe e outras coisas mais.

Deitar-se ao chão da casa de Virginia às tardes translúcidas, sempre com gente chegando e saindo, vinho se houvesse vinho, jogos de baralho, poemas vividos, música brotando do assoalho, amores rasgando o peito, possibilidades, possibilidades. Possibilidades. A ponte, a ponte. Quando se dará o grande salto? A grande lenda?

Como pombos nos multiplicamos. Quiçá um dia o Homem Grande abrirá a porta do palácio e estaremos lá, de olho, porque sobrevoamos o telhado irrepreensível de sua morada, sobre a qual cagamos, merdalhando toda a extensão da sua propriedade e somos muitos e vamos aos poucos chegando mais perto, ele de seu automóvel luxuoso nos vê nas ruas, estamos na tv e teremos o poder de sairmos pela tela e arrancaremos seus olhos em uma manhã azul, quando ele pensar estar seguro, detrás de seu cereal matinal de bosta.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Senhoras e senhores, não me venham com essa.

Algumas pessoas recolhem o lixo, outras arrumam algo para comer, você resolve ajudar a lavar louça, o tempo parece parado depois do desjejum, você olha os pontos de luz no céu, não há muito mais que o barulho de uma mosca, os dias passam, você não sabe quantos, você caiu da escada? Você escorregou no assoalho? Que marca roxa é aquela no seu cotovelo? Olá, meu nome é Ruth. Como é meu nome? Você olha pela janela, do segundo andar daquele casarão, quem é mesmo o dono daquele lugar? Você olha pela janela do segundo andar daquele casarão, pode ouvir o som de máquinas ao longe, tão distantes que apenas consegue percebê-las em silêncio absoluto, 1955, é esse o ano? 1968? Alguém fala um tanto, outro também, e mais um. 1969. 1861. O vinho escorre pelo chão, como uma água que serve para lavar ao contrário. Você pensa em dizer o seu nome, mas não se lembra muito bem e sempre que se põe para tentar lembrá-lo – ou tentar inventar um – alguém toma a palavra primeiro: a casa agora encontra-se cheia, repleta, lotada, os assoalhos rangem, as mãos se esbarram sem carinho, um cigarro queima o braço de uma garota, ela gosta, e ainda diz que gosta que um cigarro queime o braço da garota que, sem carinho, esbarra no braço de uma garota que esbarra no cigarro e diz que gosta e você desce as escadas e apanha a mochila e se manda e a porta da casa agora é um lago, um, dois, três, já, TCHIBUM! E as profundezas do lago nada mais são do que uma casa onde tudo é igual do outro lado, mas apenas um pouco diferente e as pessoas todas dizem ao mesmo tempo “NÓS VIEMOS AQUI PARA DIZER”, mas algumas o dizem rápido, outras devagar, umas em chinês, outras berram, outras falam na língua do P e você também diz aquilo, mas é como se de sua boca saíssem bolhas de sabão e seria mesmo muito melhor se realmente saíssem bolhas de sabão, mas é como se você dissesse aquilo e sentisse que saíssem bolhas de sabão que, na verdade, não saem, obstruídas pela passagem do Mantra.

terça-feira, 1 de março de 2011

[III.2.5. O desequilíbrio funcional: mais-valia de código. Isso só funciona desarranjando-se], Félix Guattari & Gilles Deleuze

É particularmente fraca e inadequada a ideia segundo a qual as sociedades primitivas são sociedades sem história, dominadas por arquétipos e sua repetição. Essa ideia não nasceu entre etnólogos, mas antes entre ideólogos presos a uma consciência trágica judaico-cristã a que eles queriam creditar a "invenção" da história. Se dermos o nome de história a uma realidade dinâmica e aberta das sociedades, em estado de desequilíbrio funcional ou de equilíbrio oscilante, instável e sempre compensado, comportando não só conflitos institucionalizados, mas também conflitos geradores de mudanças, revoltas, rupturas e cisões, então as sociedades primitivas estão plenamente na história, e muito afastadas da estabilidade ou mesmo da harmonia que se lhes quer atribuir em nome de uma primazia de um grupo unânime. A presença da história em toda máquina social aparece claramente nas discordâncias em que, como diz Lévi-Strauss, "se descobre a marca, que é impossível desconhecer, do acontecimento" 11. É verdade que há várias maneiras de interpretar tais discordâncias: idealmente, pelo desvio entre a instituição real e o seu modelo supostamente ideal; moralmente, invocando um laço estrutural da lei e da transgressão; fisicamente, como se se tratasse de um fenônemo de usura que faz com que a máquina social já não esteja apta a tratar seus materiais. Mas, ainda neste caso, parece que a interpretação correta deva ser, antes de tudo, atual e funcional: é para funcionar que uma máquina social deve não funcionar bem. Foi possível mostrar isso precisamente a propósito do sistema segmentar, sempre levado a se reconstituir sobre suas próprias ruínas; e é também o que acontece com a função política nesses sistemas, função que só se exerce efetivamente ao indicar sua própria impotência. 12 Os etnólogos não param de dizer que as regras de parentesco não são aplicadas nem aplicáveis aos casamentos reais: não por se tratarem de regras ideais, mas, ao contrário, porque elas determinam pontos críticos em que o dispositivo só volta a funcionar com a condição de ser bloqueado, situando-se necessariamente numa relação negativa com o grupo. É aí que aparece a identidade da máquina social com a máquina desejante: o seu limite não é o desgaste, mas a falha, ela só funciona rangendo, desarranjando-se, arrebentando em pequenas explosões - os disfuncionamentos fazem parte do seu próprio funcionamento, e este não é o aspecto menos importante do sistema da crueldade. Nunca uma discordância ou um disfuncionamento anunciaram a morte de uma máquina social que, ao contrário, se alimenta habitualmente das contradições que provoca, das crises que suscita, das angústias que engendra e das operações infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e até os socialistas deixavam de acreditar na possibilidade da sua morte natural por desgaste. As contradições nunca mataram ninguém. E quanto mais isso de desarranja, quanto mais isso esquizofreniza, melhor isso funciona, à americana.

11 Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 132.

12 Jeanne Favret, "La Segmentarité au Maghreb", L'Homme, abril de 1966; Pierre Clastres, "Échange et pouvoir", L'Homme, janeiro de 1962.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

sábado, 15 de maio de 2010

Uma casa
Pessoas circulam, jantam
Falam os nomes das coisas
Alguém toma banho, outros esperam
O pequeno cão ladra e brinca
A torneira aberta lava
Um vento assopra na janela
Nem é noite
Nem chove
Nem frio faz
Mas sabe-se lá, alguém estremece
e chora magro, sem deixar nas vistas, guardado por detrás de um sorriso
Quem é, não se deixa mostrar.
E Maria, pequenina, sobre a cadeira velha na porta da casa, deixa o tempo ir e dá uma tristeza daquelas também
- Maria, que te deu que te derrama?
Não sei. Alguém aqui chora em silêncio e o lamento ficou d'eu mostrar.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Geladeiras conversam
Meu bem trouxe a carne no jornal o horóscopo de ontem
Me passe o sal?
No rádio, os rouxinóis
Alguém atenda o telefone
Pegue o troco em bala depressa mulher

É hora de ir para casa, o trem sacoleja dentro do estômago
A porta, a mesa, o carimbo, o chip, o chefe
Beijo-lhe a boca, é meio dia, é hora de dormir,
Mas a tampa da panela não abre, 2% na Bolsa
Rouxinóis sobrevoam a casa, o céu de verdade
Algo entra, apesar dos muros
E vou erguendo impedimentos
Não há delegacia para esse crime
O preço do contra?
Alguém atenda o telefone
Quem vai trazer a bandeja?
A boca do chefe tem um sorriso grande
Hora de dormir
Sinal da cruz, amém
O chefe de olhos fechados, à mesa, boca aberta,
o reflexo de seu maxilar sobre a superfície prata,
a língua de fora.
Pegue o troco em bile depressa mulher
A mesa e as paredes são frias, a carne tem cheiro de fogo
Me passe o sal?
Garfo, goela, gordura.
Não sei, não vi, não falo.

segunda-feira, 22 de março de 2010

Por detrás de uns óculos duros,
um homem chora,
enquanto o jornal diz: morre-se por acidente de trânsito

Tantas pessoas transitam num curto espaço, fazem curto, o tempo

Nunca comeu maçãs do amor, nem soube presentear flores,
tampouco escrever poemas
(Se já, esqueceu-se)
Mas aprendeu que amava e que amar rimava também com portões altos, assinaturas
Nisso está de acordo com seu tempo, não enxerga portas na ponta do nariz

Largado em um banco, pouco olhou para os cadarços dos sapatos, gastos, gastos,
Nem para, no bolso, a carteira, metonímia vigente
Pouco percebeu um cheiro de feijoada do bar da esquina, nem namorou o único beija flor da cidade
Só via aquele Amor do lado de lá das lentes de seus óculos
E se sorria se Ele lhe acenava!
(Enquanto ela lá, só,
mais um sucesso no rádio, cheirando a suor,
os olhos, tão bonitos, presos em dois cortes assimétricos, pronta sem atinar,
os dedos rubros de brincar com rosas, um dia vai morrer)

Não sabe estar naquele banco que podia ser no meio da rua, tem os olhos grandes demais

Arquivo do blog