terça-feira, 1 de março de 2011

[III.2.5. O desequilíbrio funcional: mais-valia de código. Isso só funciona desarranjando-se], Félix Guattari & Gilles Deleuze

É particularmente fraca e inadequada a ideia segundo a qual as sociedades primitivas são sociedades sem história, dominadas por arquétipos e sua repetição. Essa ideia não nasceu entre etnólogos, mas antes entre ideólogos presos a uma consciência trágica judaico-cristã a que eles queriam creditar a "invenção" da história. Se dermos o nome de história a uma realidade dinâmica e aberta das sociedades, em estado de desequilíbrio funcional ou de equilíbrio oscilante, instável e sempre compensado, comportando não só conflitos institucionalizados, mas também conflitos geradores de mudanças, revoltas, rupturas e cisões, então as sociedades primitivas estão plenamente na história, e muito afastadas da estabilidade ou mesmo da harmonia que se lhes quer atribuir em nome de uma primazia de um grupo unânime. A presença da história em toda máquina social aparece claramente nas discordâncias em que, como diz Lévi-Strauss, "se descobre a marca, que é impossível desconhecer, do acontecimento" 11. É verdade que há várias maneiras de interpretar tais discordâncias: idealmente, pelo desvio entre a instituição real e o seu modelo supostamente ideal; moralmente, invocando um laço estrutural da lei e da transgressão; fisicamente, como se se tratasse de um fenônemo de usura que faz com que a máquina social já não esteja apta a tratar seus materiais. Mas, ainda neste caso, parece que a interpretação correta deva ser, antes de tudo, atual e funcional: é para funcionar que uma máquina social deve não funcionar bem. Foi possível mostrar isso precisamente a propósito do sistema segmentar, sempre levado a se reconstituir sobre suas próprias ruínas; e é também o que acontece com a função política nesses sistemas, função que só se exerce efetivamente ao indicar sua própria impotência. 12 Os etnólogos não param de dizer que as regras de parentesco não são aplicadas nem aplicáveis aos casamentos reais: não por se tratarem de regras ideais, mas, ao contrário, porque elas determinam pontos críticos em que o dispositivo só volta a funcionar com a condição de ser bloqueado, situando-se necessariamente numa relação negativa com o grupo. É aí que aparece a identidade da máquina social com a máquina desejante: o seu limite não é o desgaste, mas a falha, ela só funciona rangendo, desarranjando-se, arrebentando em pequenas explosões - os disfuncionamentos fazem parte do seu próprio funcionamento, e este não é o aspecto menos importante do sistema da crueldade. Nunca uma discordância ou um disfuncionamento anunciaram a morte de uma máquina social que, ao contrário, se alimenta habitualmente das contradições que provoca, das crises que suscita, das angústias que engendra e das operações infernais que a revigoram: o capitalismo aprendeu isso e deixou de duvidar de si, e até os socialistas deixavam de acreditar na possibilidade da sua morte natural por desgaste. As contradições nunca mataram ninguém. E quanto mais isso de desarranja, quanto mais isso esquizofreniza, melhor isso funciona, à americana.

11 Lévi-Strauss, Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1958, p. 132.

12 Jeanne Favret, "La Segmentarité au Maghreb", L'Homme, abril de 1966; Pierre Clastres, "Échange et pouvoir", L'Homme, janeiro de 1962.

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